sexta-feira, novembro 10, 2006

Adeus, Lênin

A matéria vai ser publicada amanhã no Correio Popular de Campinas

A história do

homem que abalou

a história do século XX



Pai da pátria socialista é o tema de nova biografia do pesquisador britânico Robert Service



Artur Araujo
arturaraujo@cosmo.com.br
Do Cosmo On Line

Ele foi o grande defensor dos camponeses e dos trabalhadores das indústrias, mas também foi, como líder político, responsável pela matança de milhares desses homens e mulheres, assim como dos inimigos de sua ideologia. Foi também um adversário da polícia política tzarista, a Okrana, mas criou uma polícia política, a Cheka, que fez com que o aparato repressivo da monarquia russa parecesse um bando de amadores perto dos camaradas do porão soviético. Declarava-se, por fim, contra a guerra, um defensor da “paz definitiva” mas, assim que tomou o poder, comandou um governo que manteve o país em confrontos militares externos e internos, que culminaram gerando aquilo que o intelectual de esquerda alemão pós-marxista Robert Kurz denomina de “socialismo de caserna”. Estamos, obviamente, falando de Lênin (1870-1924), um dos homens mais importantes do século XX.

Tudo que foi dito acima é notório há décadas e motivo de vários livros, tanto em defesa dessas atitudes –e a obra “Dez dias que abalaram o mundo”, de John Reed, é um dos mais marcantes sob esse aspecto–, quanto na denúncia desses atos. Mas, com o fim do regime soviético, em 1991, novos ares ventilam as montanhas de documentos sobre aquela era. O fim da ditadura bolchevique permitiu a pesquisadores conhecer mais detalhes, tanto do regime, quanto daqueles que lideraram o governo revolucionário.

Foi nesse contexto que a editora Bertrand Brasil, por meio do selo Difel, nos trouxe "Lênin", do professor britânico Robert Service: um catatau de 630 páginas que narra desde a história da família dele até a morte do estadista, aos 53 anos. O que o livro acrescenta de realmente novo ao que já se sabe sobre o fundador do Estado Soviético? Honestamente, muito pouca coisa. O autor reforça a possiblidade de a revolucionária francesa Inessa Armand (1874-1920) ter tido um longo caso extraconjugal com ele, mas outros textos já tinham aventado essa hipótese. Robert Service também nos revela os bastidores do Kremlin, mas outras obras também fizeram isso. O livro, portanto, não tem valor algum? Na verdade, tem.

Trata-se de um trabalho muito bem escrito. Ótimo para quem não conhece a história do líder bolchevique. Foi produzido à maneira de um romance, conotando o talento narrativo de alguém que domina bem o ritmo de um texto de fôlego. "Lênin", de Robert Service, é, igualmente, preciso. Os fatos são minuciosamente e rigorosamente descritos na obra.

O livro, é bom frisar também, foi feito por alguém que não tem Lênin entre seus heróis, mas, de um modo ou de outro, a biografia é fiel e fornece um quadro minucioso do personagem histórico. O autor relembra, inclusive, a origem judaica do revolucionário, a qual ele aliás se orgulhava: Mosho Blank foi bisavô de Lênin por parte de mãe e judeu convertido ao cristianismo ortodoxo.

E o que vemos nesse minucioso quadro da vida do revolucionário? Um homem inteligente, cruel, autoritário, obstinado, insensível, carismático e absolutamente independente no plano intelectual.

Eis aí, aliás, um problema do livro de Service e de uma miríade de outros biógrafos de líderes políticos: personalidade não “explica” política de Estado nem mesmo de partido. Políticos —não importa a cor ideológica— são atores. Eles expressam, canalizam e representam aspirações de grupos sociais. No momento em que deixam de fazer isso, deixam de ser políticos. Por isso, misturar psicologia e política, como mais de um biógrafo já se sentiu tentado a fazer, termina por criar um quadro distorcido.

Lênin era muitas vezes insensível. Várias passagens da vida dele mostram isso e a biografia não deixa de mostrá-las. Robert Service nos conta, por exemplo, que o primo dele, Vladimir Ardashev, com quem manteve ótimas relações na adolescência, foi morto por bolcheviques por “pertencer à burguesia” —uma acusação aliás que cairia como uma luva também no pai da nação soviética, cuja família, para piorar, descendia da pequena nobreza russa por parte do avô materno, Alexander Blank. Ficamos sabendo também que Lênin não deu bola para a morte de Vladimir Ardashev. Após a leitura desse livro, somos levados a concluir que o dito de Oscar Wilde: “as biografias deram à Morte um novo terror”, é perfeitamente pertinente: defuntos famosos terminam eternizados não só pelo lado positivo de suas vidas, mas também por suas proezas degradantes nesse tipo de obra...

No contexto das barbaridades de Lênin, acrescente-se, o assassinato da família do tzar, em que pese a insensibilidade social do monarca russo e o desastrado governo dele, teve toques dignos de crime organizado e só reforça a imagem de crueldade de seu mandante, o fundador do regime soviético. A família real, inclusive as crianças, foi chacinada sumariamente durante a madrugada, na adega de uma casa em Ecaterimburgo, após vários meses sob o regime de prisão domiciliar, no ano de 1918.

Bem, estamos então diante de um Lênin cruel. Isso explica a crueldade do regime soviético, certo? A resposta mais provável é não. O regime tzarista também foi cruel e o frágil regime do socialista moderado Alexander Kerenski (1881-1970), que tentou não ser cruel, caiu de maduro em poucos meses. Era uma época de instabilidade e a atitude que garantiu a manutenção do poder foi a truculência, o que não legitima em nada o que foi feito.

Dentre os vários episódios destacados no livro, o autor resgata, nas páginas 385 e 419 a 421, episódios menos citados na biografia do estadista. Estamos falando dos atentados sofridos por Lênin em 1918. Poucas linhas, contudo, foram dedicadas ao tema. Mesmo o nome de Dora Kaplan, militante socialista que tentou matá-lo a tiros em agosto daquele ano, não foi mencionado na passagem, o que soou como um pequeno lapso no contexto do grande esforço biográfico do livro. Já a doença que vitimou o líder bolchevique, Robert Service descreve minuciosamente sua agonia, descartando, na página 501, a hipótese de sífilis e atribuindo a causa mais provável à arteriosclerose.

O líder bolchevique morreu em 1924 e o regime que ele criou deu seu último suspiro em 1991. O fenômeno Lênin, contudo, está longe de ser esquecido. Certamente, o líder bolchevique entrou para a história do mundo e da Rússia, não de modo tão sinistro como Hitler, mas talvez —como Eisenstein já sugeriu para Stalin— como um Ivã, o Terrível; ou seja, um líder cruel, mas necessário em função de razões de Estado. Lênin não deve, aliás, ser compreendido individualmente. O marxismo vulgar que, sob o verniz de ciência, esconde crenças religiosas tão dogmáticas quanto o cristianismo, tem seu apelo no fracasso capitalista de promover a inclusão social.

Karl Marx iniciou seu Manifesto Comunista com a bombástica frase “Um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo”. O marxismo foi, de fato, um “fantasma”, que materializou-se na Revolução Bolchevique e praticamente exterminou modelos alternativos de mudança social. O programa autoritário de salvação do filósofo alemão foi personificado nas táticas e idéias de seu mais famoso discípulo, o também autoritário Lênin. A morte dele e a ascensão de Stalin, que radicalizou tudo de ruim que já estava germinando sob o leninismo, terminou por torná-lo uma múmia, não apenas no sentido de um grotesco cadáver em permanente exposição na Praça Vermelha, mas também como uma “múmia metafórica”, que criou um padrão de pensamento e de atitudes para os grupos de esquerda do mundo, rondando-os e assombrando-os até hoje.

sábado, julho 22, 2006

Teses sobre blogs

Bem, estou cada vez mais bem acompanhado em minha dissertação de mestrado sobre blogs.

Lidei com um objeto ainda em "metamorfose ambulante". Acho que preciso inclusive aprofundar meus achados.

Descobri no banco nacional de teses que, além da minha, há duas mais cadastradas.

A primeira eu já conhecia, é da Fabiana Komesu, da Unicamp. Intitula-se Entre o publico e o privado : um jogo enunciativo na constituição do escrevente de blogs da internet.

A segunda é provavelmente de uma "conterrânea" minha do Rio de Janeiro. Trata-se de Flavia di Luccio, com a dissertação "As múltiplas faces dos blogs: um estudo sobre as relações entre escritores, leitores e textos". O enfoque, pelo que entendi, foi na área da psicologia.

Até onde eu sei, faltam ainda as dissertações de Denise Schittine, que já virou livro, aliás, a de Rosa Meire Carvalho de Oliveira, que resumiu seu trabalho em um artigo publicado em livro, e Jan Aline Barbosa, que ainda não tive notícias de publicação.

Certamente, deve haver mais textos, mas esses são os que conheço.

quarta-feira, julho 19, 2006

Meu tio-avô, Murillo Araujo - parte 2

Descobri mais uma obra de meu tio-avô Murillo Araujo, a quem dediquei um site.

O sr. Marcelo Rodolfo, do Museu Villa-Lobos no Rio, me passou dois textos dele. São crônicas sobre como ele compôs a Canção de Cristal e a Canção da Imprensa, juntamente com Villa-Lobos.

Ao sr Marcelo Rodolfo manifesto aqui mais uma vez minha gratidão.

O texto abaixo consta do livro Presença de Villa-Lobos - 1° Volume, (MUSEU VILLA-LOBOS, org. Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/DAC/Museu Villa-Lobos, 1° Vol., 2ª ed., 1977) nas páginas 172 a 175.

Bem, abaixo está a segunda crônica...

O Papão Carinhoso


Murillo Araujo

Admirei Villa-Lobos desde os dias de minha adolescência insubmissa... Mas eu o admirava e o temia.

Por sabê-lo para o vulgo "meio louco em sua música audaciosa" eu, fervoroso, o admirava; e por o julgarem “áspero, arrogante, orgulhoso e Intratável", eu, retraído o temia.

Inquieto, evitei até várias vezes ser-lhe apresentado por amigos comuns.

Assim, não foi muito tranqüilo Que, num dia de abril de 1940, li, numa carta que me endereçara Herbert Moses, estas imperiosas palavras: "Meu caro Murilo. - Eu não costumo dar ordens, mas desta vez vou dar. Você está intImado a ajustar sua poética com a pauta do Maestro Villa-Lobos, para juntos comporem a canção da nossa classe".

E esta! - pus-me a pensar. Como o Júpiter trovejante dos sons, o Senhor dos raios da harmonia iria receber o simples mortal; fiel de Apoio, que era eu.

Hesitei dois dias antes de, por telefone, dirigir-me ao ao grande homem.

Quando o fiz finalmente, a resposta veio enérgica e irritada:

- Quem está falando? Que deseja?

- Maestro - balbuciei - é alguém que teve a honrosa de colaborar com o senhor num trabalho artístico...

- Mas quem é afinal? - replicaram num tom que me deu ganas de desligar o fone e desistir...

Com decisão, todavia, articulei corajosamente meu nome.

E, para surpresa minha, tudo se transformou. Foi com aquela voz doce de cordial bondade, que linha para com todos os artistas, que Villa-Lobos me falou:

- O meu querido poeta - disse. Mas há dois dias que estou à sua espera. Onde poderei procurá-lo?

Apressei-me em dizer-lhe que eu é que iria ao seu encontro onde ele quisesse.

- Ah, sim? Nesse caso estou à sua espera aqui no SEMA. Está bem? Venha logo.

Dirigi-me pouco depois àquele departamento da Prefeitura, destinado ao Canto Orfeônico e situado no Edifício Andorinha.

E nada vi de terrível no rosto sorridente, com a candura de criança grande bem própria dos artistas puros, que me recebeu com singeleza e cordura perfeitas.

- Pois é - disse Villa-Lobos - enquanto com um gesto me mandava assentar, o senhor não apareceu logo. E para não perder tempo eu compus aqui uma coisinha para acertar a mão... Mas naturalmente não vai servir; porque o senhor há de querer escrever primeiro a letra, que é mais fácil e é o que geralmente se faz.

- Maestro - falei eu - gostaria de ouvir a música que compôs.

- Ah, quer ouvir? Então vou tocá-la.

Sentou-se ao piano e brotaram de suas mãos mágicas os acordes heróicos da "Canção da Imprensa".

Quando, ao terminar,perguntou-me ingenuamente se havia gostado,respondi com entusiasmo:

- Ah. mas seria um crime deixarmos de utilizar uma maravilha dessas. Terei mesmo é de procurar entrar em sua melodia,

- E você pode? - disse ele, abolindo já o antipático e cerimonioso "senhor" inicial.

- Sim, vou tentá-Ia pelo menos, com o máximo empenho. Façamos, já o monstro.

Começou então o compositor a ditar-me palavras sem nexo, mas encaixadas exatamente na melodia a fim de serem depois substituídas por Versos meus de metro e ritmo perfeitamente análogos.

Num dado momento,a certo período que ditara, eu o interrompi:

- Desculpe, mas esta frase não concorda com a prosódia musical.

Villa-Lobos esfregou então as mãos de contente, satisfeito com o resultado do seu ardil, e gritou para.a devotada irmã de sua vida, que se achava presente:

- Ele faz Mindinha- Já vi que ele é capaz de fazer!

Na despedida, disse-me alegre:

- Então, amanhã trará a letra?

- Amanhã não - murmurei assustado. Tremo ante a responsabilidade de colaborar com Villa-Lobos...

Nosso encontro fora num sábado. E quando dois dias depois, na segunda-feira, apresentei-lhe o poema acabado sentou-se logo ao piano e depois de solfejá-lo, teve para comigo as mais generosas palavras:

- Está ótimo, exato! O seu trabalho é magnífico!

Dias depois convidou-me para a primeira execução do nosso trabalho, pelo Orfeão de Professores, no auditório do Instituto de Educação. A audição, com a presença de todo o Conselho Defiberativo da ABI e de seu Presidente Herbet Moses, que disse uma de suas breves e cordiais alocuções, foi realizada no dia 25 de abril de 1940, às onze horas de uma linda manhã. A canção foi calorosamente aplaudida e várias vezes repetida E o bom Villa-Lobos fez questão de dividir comigo um pouco de sua glória, pedindo "salvas de palmas para o poeta". E em seguida veio buscar-me pela mão para que recitasse sem música o poema, que "considerava esplêndido", o que eu fiz, ovacionado pelos presentes, contagiados pela liberalidade daquela grande e nobre alma.

E nasceu assim a alta e sincera estima que desde então me uniu a Villa-Lobos, estima que foi uma das grandes festas da minha vida, e agora, a morte muda em meus olhos num orvalho de mágoa.

A "Canção da Imprensa" seguiram-se para mim 19 anos de afetuoso convívio com o Maestro Villa-Lobos. Dezenove anos de uma amizade que contou em minha vida como pura alegria. e como alta glória. Compusemos juntos outras árias. E ainda, recentemente, apareceu em Paris, num bela edição a "Canção de Cristal", magnífica melodia com que o gênio quis honrar alguns versos singelos de um dos meus últimos livros. Todas estas lembranças enevoam minha alma - agora que se extinguiu aquele que era uma de suas luzes. E Quando ainda temos os olhos graves por sua morte, com emoção releio numa de suas cartas estas carinhosas palavras:

"Meu Caro Murilo: Tu sempre foste, és e serás um estado no país do meu coração"

E pela feliz circunstância de ter sido um dia parte de tão alto e luminoso país, não terá sido totalmente perdida a minha vida no dia em que eu me for.

Meu tio-avô, Murillo Araujo

Descobri mais uma obra de meu tio-avô Murillo Araujo, a quem dediquei um site.

O sr. Marcelo Rodolfo, do Museu Villa-Lobos no Rio, me passou dois textos dele. São crônicas sobre como ele compôs a Canção de Cristal e a Canção da Imprensa, juntamente com Villa-Lobos.

Ao sr. Marcelo Rodolfo manifesto aqui mais uma vez minha gratidão.

O segundo texto segue abaixo. Ele consta do livro Presença de Villa-Lobos - 1° Volume O texto abaixo consta do livro Presença de Villa-Lobos - 1° Volume, (MUSEU VILLA-LOBOS, org. Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/DAC/Museu Villa-Lobos, 1° Vol., 2ª ed., 1977), nas páginas 170 a 172.

Como surgiu a


Canção de Cristal


Murillo Araujo

Villa-Lobos, o grande poeta dos sons, tinha, como todos os poetas, uma alma iluminada de criança.

Era, porém, uma dessas crianças de inicio esquivas, que armam cara feia para os desconhecidos; mas que abrem depois aos que lhes souberam conquistar a confiança, o delicado coração repleto de bondade e de pureza.

Suas reações eram a principio arrebatadas e bruscas.

E eu bem senti essa verdade naquela tarde em que o encontrei na ABI, interessado como sempre em sua partida de bilhar.

Já me fora dada a distinção de figurar com meus versos ao lado de sua pauta ilustre em três ou quatro de suas composições, desde a "Canção da Imprensa", de que resultara o nosso conhecimento mútuo, quando Herbert Moses me confiara a missão de escrever-lhe a letra.

Já recebera mesmo do grande músico muitas provas daquela generosa estima que foi para mim alegria tão rara como alta glória.

Por isso naquele dia, dirigi-me a ele cheio de esperança para o favor que vinha solicitar-lhe.

- Maestro - disse - tenho tido a fortuna de, por mais de uma vez, entrar com meus poemas em sua música. Queria agora que me fizesse honra maior, musicando uma canção que escrevi há pouco.

Para surpresa minha, Villa-Lobos suspendeu a tacada que ia desferir, com ar sério e frio.

- É, mas eu já havia jurado que não comporia mais nada no gênero depois das minhas serestas - respondeu. - E sua canção, além do mais, é para voz de homem. Pior ainda!

- Está bem. Fiz-lhe esse pedido por saber com que facilidade compõe: mas se é assim não falemos mais nisso...

E tratei logo de retirar-me.

Villa-Lobos, porém, falou-me no outro dia e várias vezes depois, todas as vezes em que nos encontrávamos.

- Onde estão os versos? - dizia.

E como eu lhe replicasse que o assunto estava liquidado, insistia:

- Mas eu quero ver o poema. Eu também gosto dessas coisas.

- Não. Aqui não. Empreste-me o papel para eu ler em casa.

E, na primeira ocasião em que me viu depois, foi-me dizendo logo com um franco sorriso:

- Ah! mas aquilo é, muito bonito! Aquilo eu não lhe devolvo já porque quero musicar!

Sucedeu, porém, que a seguir enfermou gravemente.

Pensei que, em meio das mais graves apreensões, lutando com a morte, não se lembraria mais, é claro, de meu modesto pedido.

Quando voltou da América, onde fora operado com êxito, felizmente, fui visitá-lo. E recebeu-me, ainda muito pálido e estendido em seu sofá, com estas palavras amigas:

- Oh "coração dos outros”! Foi preciso que eu quase morresse para você vir aqui me ver?

Conversamos sobre muitas coisas, mas não lhe toquei, como era natural, na canção.

Passaram-se meses. E já nem me lembrava mais do caso quando fui chamado ao telefone. Era Villa-Lobos.

- Passe logo mais pela ABI - disse ele - que há lá qualquer coisa para você.

E quando indaguei do encarregado, na Associação, se havia "qualquer encomenda para mim, recebi, numa caprichosa cópia, a música da "Canção de Cristal"!

Dias depois fui chamado à casa do Maestro onde conheci a extraordinária artista Cristina Maristany que, com sua aprimorada técnica e sua voz de ouro, interpretou pela primeira vez a nossa canção.

De regresso, finalmente, de uma de suas últimas viagens à Europa, Villa-Lobos presenteou-me com exemplares da "Canção de Cristal", que acabara de ser lindamente editada em Paris Casa Casa Max-Eschig.

Depois de amuo passageiro, a criança, que era no íntimo a alma do gênio, sorria enfim... sorria com aquela alta luz de bondade total.

sábado, julho 08, 2006

Uma lição de jornalismo, por Voltaire

O texto abaixo saiu hoje no Caderno C do Correio Popular

Uma lição de jornalismo, por Voltaire


Artur Araujo
Do Cosmo On Line


Ele tinha 42 anos, estava na plenitude da forma intelectual e escrevia sobre tudo. Era um talento das letras e um dos primeiros na seleta intelligentsia de seu tempo. Nessa ocasião, refugiado no castelo da marquesa de Châtelet em Cirey-en-Champagne, na França, por conta de perseguições políticas, Voltaire (1694-1778) investiu sua mente brilhante em algo que, se não era absolutamente novo, estava ainda em formação. Intitulada “Conselhos a um jornalista” (Editora Martins Fontes, 170 p.), a obra, datada de 1737, foi traduzida e reimpressa este ano. Pela raridade das edições disponíveis, é obrigatória para aqueles que estudam o assunto.


Surgida no século XVI na Europa, a imprensa, como gênero, já se consolidara, apesar das perseguições dos regimes políticos conservadores do continente e das naturais dificuldades de qualquer segmento econômico em se desenvolver e prosperar.


O jornalismo, da mesma forma, não era um campo inexplorado de estudos. Tobias Peucer já apresentara, na Universidade alemã de Leipzig, em 1690, aquela que é considerada a primeira tese de doutorado sobre o tema: “Os relatos jornalísticos”, cuja excelência e atualidade ainda hoje impressionam.


A edição da Martins Fontes é na realidade uma coletânea de artigos do pensador e os “Conselhos a um jornalista”, que abre a antologia, ocupa 37 das 170 páginas do livro. Se o primeiro texto interessa como objeto de estudo, os seguintes –que são artigos publicados no “Jornal de política e literatura” (Journal de politique et de littérature) e na “Gazeta literária da Europa” (Gazette Littéraire de L’Europe)– são uma excelente forma de descobrir como o genial Voltaire encarava seus contemporâneos e as questões da época dele.


O texto pode ser considerado como o esboço de um manual de redação, pois é extremamente normativo, preconizando aos profissionais de imprensa uma ampla formação cultural, o equilíbrio na exposição de pontos de vista diversos na abordagem das notícias e o esmero na expressão lingüística, um conjunto de recomendações ainda atual. É aliás interessantíssimo o parágrafo de abertura. Nele, Voltaire propõe algo que talvez não fosse inédito na época, mas era certamente um conceito ainda pouco corrente na imprensa, que é a imparcialidade: “A publicação periódica na qual pretendes trabalhar pode certamente ter êxito, apesar de já haver muitas dessa espécie. Perguntas como se deve agir para que tal jornal agrade nosso século e a posteridade. Responderei com duas palavras: Sê imparcial.” O alemão Peucer, que antecedeu Voltaire, por exemplo, preconizava que a verdade era o fundamento do jornalismo, mas sequer toca na questão da imparcialidade, até porque a verdade, muitas vezes, como no caso da mentira ou da ignorância, está apenas em um lado da questão.


Os “Conselhos a um jornalista” dirigem-se à imprensa em geral, mas fica nítida uma ênfase à área da cultura, pois o autor se detém mais a respeito de procedimentos para a resenha de livros e a crítica de arte do que, por exemplo, no tratamento de questões políticas.


O texto é marcado por questões da época, e, em alguns casos, as recomendações, se compreendidas ao pé da letra, soam datadas, como por exemplo quando o autor francês recomenda, na página 30, que os jornalistas saibam ao menos inglês e italiano. O conhecimento de outros idiomas –seja qual língua for– é sempre útil a um profissional de imprensa e cada época tem uma conjuntura específica, que privilegia determinados vernáculos.


Voltaire era uma língua ferina e isso ajuda a apimentar o texto e a tirar-lhe, aliás, aquilo que o autor recomendou aos profissionais de imprensa: a previamente louvada imparcialidade. Apesar de a maioria dos nomes citados nos “Conselhos a um jornalista” terem espaço apenas nos mais meticulosos compêndios de história, é divertido vê-lo alfinetar personagens de um passado recente e mesmo seus contemporâneos como, por exemplo, na página 6, quando ele sugere eqüidade na discussão de fatos históricos: “Deixa Juvenal e Boileau, do fundo de seus gabinetes, passar carraspanas [reprimendas] em Alexandre [o grande], a quem teriam incensado à exaustão se tivessem vivido sob ele”. No primeiro caso, o autor refere-se a um suposto caráter adulador tanto do poeta romano (60-140), conhecido por suas sátiras corrosivas, quanto do escritor Nicolas Boileau (1636 – 1711), que morrera alguns anos antes, ou quando, nas páginas 18 a 21, critica a qualidade literária de alguns versos de Rousseau – que os leitores mais incautos podem confundir com o filósofo Jean Jacques (1712-1778), mas que se trata aqui do poeta Jean-Baptiste (1671 - 1741). O livro, aliás, não informa isso, o que pode ser considerado um lapso, principalmente pelo fato de a edição, vertida de um projeto literário francês, proporcionar uma fartura de notas explicativas de rodapé. Talvez isso seja óbvio para um leitor do país natal de Voltaire, mas não o é no Brasil.


Além do artigo que dá nome ao livro, alguns outros interessam pelos personagens que inspiraram os textos. Das páginas 41 e 44, Voltaire analisa a obra-prima do irlandês Laurence Sterne (1713-1768), “A vida e as opiniões de Tristam Shandy”, que inspirou Machado de Assis a escrever “Memórias póstumas de Brás Cubas”. O pensador francês sentencia, na página 42: “Há, em Sterne, lampejos de uma razão superior, como vemos em Shakespeare”.


Outro texto muito interessante é o seguinte, no qual ele faz picadinho do jornalista Jean-Paul Marat (1743 - 1793), que anos depois tornou-se um dos mais radicais partidários da guilhotina e que terminou assassinado por uma aristocrata simpatizante da realeza. Bem, além de homem de imprensa, Marat foi médico, e nosso arrogante e brilhante Voltaire dedicou-lhe, em 1775, um artigo no “Jornal de política e literatura” no qual desmorona vários conceitos da tese de doutorado do médico-jornalista. Entre outras coisas, vale destacar a da página 50: “Ao que parece o senhor Marat mais caluniou a natureza humana que a conheceu”. Para muitos historiadores, o período de 1770 e 1780 foi marcante na vida do futuro revolucionário, pois a sistemática rejeição de seus escritos –e Voltaire foi parte ativa nessa “queimação de filme”– ajudou-o a tornar-se, a partir de 1789, em um dos mais entusiasmados radicais da Revolução Francesa. Felizmente nosso articulista Voltaire morrera antes da queda da Bastilha e não correu riscos de vingança quando o polemista passou a ter poder político.


O livro da Martins Fontes é, portanto, uma referência importante para a formação de um profissional de imprensa. Muito mais do que acompanhar as mais recentes pesquisas publicadas pelo mercado editorial, cabe àqueles que estudam humanidades conhecer os textos basilares de seu ramo de estudo. O jornalismo, assim como tudo que é humano, muda, mas também é vital à imprensa que, sem perder a essência de ser um relato não-ficcional de acontecimentos memoráveis, consiga adaptar-se a novos momentos e novas etapas na história da humanidade. Dominar esse legado só consolida a formação de um profissional e pesquisador de mérito.

quinta-feira, julho 06, 2006

Cd mostra nascimento da música brasileira

Essa saiu no Correio e no Cosmo

http://www.cosmo.com.br/diversaoarte/integra.asp?id=158151

Um envolvente e instrutivo passeio musical pela história de um Brasil prestes a se tornar independente. Um país que, no tumultuado período que compreende o fim do século XVIII e o início do XIX, buscava afirmar-se não só na política e na economia como também nas artes. Eis aí uma boa forma de definir o cd “Estes nossos brasis”, obra-solo de Edmundo Hora em fortepiano, lançado recentemente.

Dominique Torquato/AAN
Edmundo Hora: resgate da música pré-independência

Edmundo Hora é professor de música de câmara barroca e de cravo do Instituto de Artes da Unicamp. Ele tem sua biografia marcada por uma devoção exemplar ao legado dos compositores europeus e brasileiros dos séculos XVII ao início do XIX, o que pode ser constatado em seus três cds anteriores: “Triplo continuo” (1999), no qual integra, como cravista e organista, um trio com dois outros violoncelos, e explora obras de mestres barrocos italianos, “América Portuguesa” (1999), no qual rege a orquestra Armonico Tributo, sobre músicos nacionais do período colonial, e “Froberger” (2000), obra-solo em cravo sobre o compositor alemão (1616-1667).


Reprodução
Edmundo Hora: resgate da música pré-independência

O cd “Estes nossos brasis”, traz compositores europeus e brasileiros no período imediatamente anterior à independência. O respeito à arte desse momento específico da história pode ser observado inclusive na escolha do instrumento, o fortepiano, que difere do piano contemporâneo por algumas sutilezas de construção. Em “Estes nossos brasis”, ouvimos uma reprodução de um instrumento produzido em Viena, em 1796. Temos no cd uma obra de Mozart, a Fantasia em dó menor, e outra de Haydn, o adágio em lá maior. Trata-se de artistas que, juntamente com Rossini, o compositor de “O Barbeiro de Sevilha”, moldaram e inspiraram os mestres brasileiros daquele período. Há ainda um autor que, apesar de “formalmente” austríaco, foi um verdadeiro cidadão do mundo: Sigismund von Neukomm (1778-1858), do qual falaremos mais adiante. Do lado nacional há três obras anônimas: uma sonata encontrada em Sabará (MG), datada do final do século XVIII, e duas peças definidas como lundum, que é uma música de inspiração africana, de compasso binário, concebida para dançar, que cativou gerações de compositores brasileiros, tanto eruditos quanto populares, a partir do século XVIII. Há também o padre-compositor carioca José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), um dos grandes mestres de nossa música, e, por fim, o bem menos conhecido luso-brasileiro Antonio Vieira Santos (1787-1853), que nasceu no Porto mas ainda na infância veio para o Brasil, fixando-se no Paraná. Sobre a sonata de autor anônimo, o musicólogo Henrique Lian, que assina o texto de apresentação do cd, define-a como “o principal legado desta gravação”, pela excelência da composição e pela maestria com que o esquecido compositor lidou com o legado de Mozart principalmente, mas também dos de Haydn e do italiano Muzio Clementi (1752-1832), um mestre do classicismo um tanto quanto eclipsado pela brilhante escola vienense que incluía, além de Haydn e Mozart, Beethoven. Dos dois lunduns anônimos, um se destaca: o em lá menor, que evoca uma africanidade meio “caribenha”. Reprodução


Pintura do impressionista Henrique Bernardelli (1858 - 1936) reproduz o que seria um recital de José Maurício para Dom João VI e Carlota Joaquina


Já José Maurício Nunes Garcia foi, sob diversos aspectos, o “pai” de nossos compositores eruditos. Outros tinham-no antecedido e, desses, o mineiro José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1756-1806) foi o grande predecessor, mas a obra mauriciana, além da sua qualidade, foi marcada pela independência nacional, o que deu a ela um status de marco. Dele, Edmundo Hora trouxe uma preciosidade, já algumas vezes gravada, mas ainda assim desconhecida por grande parte do público leigo brasileiro: “Compêndio de Música e Methodo de Pianoforte”. Datada oficialmente de 1821, a partitura conhecida é de 1864. O cd nos traz seis lições. A pesquisadora carioca Cleofe Person de Mattos (1913-2002) destacou em sua biografia sobre o padre compositor que a obra tinha caráter didático. Trata-se de um exercício para a prática do piano, com a explícita citação de obras de Haydn, Rossini e Mozart. Há, por fim, Sigismund von Neukomm, com a música “Les adieux à ses amis Brésiliènnes à Rio de Janeiro” (“As despedidas a seus amigos brasileiros no Rio de Janeiro”), composta em 1821. Neukomm foi um cidadão do mundo muito antes que essa palavra tivesse o sentido que tem hoje. Aluno de Haydn em Viena, foi artista de destaque em Paris. Esteve na Itália, na Rússia, na Argélia e no Brasil. Ele foi um dos musicistas da época mais entusiasmados pela obra de José Maurício. O artista austríaco chegou a publicar, em julho de 1820, um artigo no jornal cultural Allgemeine Musikalische Zeitung (Jornal de música geral), de Viena, elogiando a genialidade do artista nacional. A obra de Neukomm, datada de 1821 – um ano antes da independência – e caracterizada por uma profunda melancolia, como o próprio nome dá a entender, marcou a despedida dele do Brasil. A música de Neukomm encerra o disco e, de certo modo, marca uma importante fase artística de um país a poucos meses da independência.

Minha dissertação está no portal "Saber" da USP

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