quarta-feira, julho 19, 2006

Meu tio-avô, Murillo Araujo - parte 2

Descobri mais uma obra de meu tio-avô Murillo Araujo, a quem dediquei um site.

O sr. Marcelo Rodolfo, do Museu Villa-Lobos no Rio, me passou dois textos dele. São crônicas sobre como ele compôs a Canção de Cristal e a Canção da Imprensa, juntamente com Villa-Lobos.

Ao sr Marcelo Rodolfo manifesto aqui mais uma vez minha gratidão.

O texto abaixo consta do livro Presença de Villa-Lobos - 1° Volume, (MUSEU VILLA-LOBOS, org. Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/DAC/Museu Villa-Lobos, 1° Vol., 2ª ed., 1977) nas páginas 172 a 175.

Bem, abaixo está a segunda crônica...

O Papão Carinhoso


Murillo Araujo

Admirei Villa-Lobos desde os dias de minha adolescência insubmissa... Mas eu o admirava e o temia.

Por sabê-lo para o vulgo "meio louco em sua música audaciosa" eu, fervoroso, o admirava; e por o julgarem “áspero, arrogante, orgulhoso e Intratável", eu, retraído o temia.

Inquieto, evitei até várias vezes ser-lhe apresentado por amigos comuns.

Assim, não foi muito tranqüilo Que, num dia de abril de 1940, li, numa carta que me endereçara Herbert Moses, estas imperiosas palavras: "Meu caro Murilo. - Eu não costumo dar ordens, mas desta vez vou dar. Você está intImado a ajustar sua poética com a pauta do Maestro Villa-Lobos, para juntos comporem a canção da nossa classe".

E esta! - pus-me a pensar. Como o Júpiter trovejante dos sons, o Senhor dos raios da harmonia iria receber o simples mortal; fiel de Apoio, que era eu.

Hesitei dois dias antes de, por telefone, dirigir-me ao ao grande homem.

Quando o fiz finalmente, a resposta veio enérgica e irritada:

- Quem está falando? Que deseja?

- Maestro - balbuciei - é alguém que teve a honrosa de colaborar com o senhor num trabalho artístico...

- Mas quem é afinal? - replicaram num tom que me deu ganas de desligar o fone e desistir...

Com decisão, todavia, articulei corajosamente meu nome.

E, para surpresa minha, tudo se transformou. Foi com aquela voz doce de cordial bondade, que linha para com todos os artistas, que Villa-Lobos me falou:

- O meu querido poeta - disse. Mas há dois dias que estou à sua espera. Onde poderei procurá-lo?

Apressei-me em dizer-lhe que eu é que iria ao seu encontro onde ele quisesse.

- Ah, sim? Nesse caso estou à sua espera aqui no SEMA. Está bem? Venha logo.

Dirigi-me pouco depois àquele departamento da Prefeitura, destinado ao Canto Orfeônico e situado no Edifício Andorinha.

E nada vi de terrível no rosto sorridente, com a candura de criança grande bem própria dos artistas puros, que me recebeu com singeleza e cordura perfeitas.

- Pois é - disse Villa-Lobos - enquanto com um gesto me mandava assentar, o senhor não apareceu logo. E para não perder tempo eu compus aqui uma coisinha para acertar a mão... Mas naturalmente não vai servir; porque o senhor há de querer escrever primeiro a letra, que é mais fácil e é o que geralmente se faz.

- Maestro - falei eu - gostaria de ouvir a música que compôs.

- Ah, quer ouvir? Então vou tocá-la.

Sentou-se ao piano e brotaram de suas mãos mágicas os acordes heróicos da "Canção da Imprensa".

Quando, ao terminar,perguntou-me ingenuamente se havia gostado,respondi com entusiasmo:

- Ah. mas seria um crime deixarmos de utilizar uma maravilha dessas. Terei mesmo é de procurar entrar em sua melodia,

- E você pode? - disse ele, abolindo já o antipático e cerimonioso "senhor" inicial.

- Sim, vou tentá-Ia pelo menos, com o máximo empenho. Façamos, já o monstro.

Começou então o compositor a ditar-me palavras sem nexo, mas encaixadas exatamente na melodia a fim de serem depois substituídas por Versos meus de metro e ritmo perfeitamente análogos.

Num dado momento,a certo período que ditara, eu o interrompi:

- Desculpe, mas esta frase não concorda com a prosódia musical.

Villa-Lobos esfregou então as mãos de contente, satisfeito com o resultado do seu ardil, e gritou para.a devotada irmã de sua vida, que se achava presente:

- Ele faz Mindinha- Já vi que ele é capaz de fazer!

Na despedida, disse-me alegre:

- Então, amanhã trará a letra?

- Amanhã não - murmurei assustado. Tremo ante a responsabilidade de colaborar com Villa-Lobos...

Nosso encontro fora num sábado. E quando dois dias depois, na segunda-feira, apresentei-lhe o poema acabado sentou-se logo ao piano e depois de solfejá-lo, teve para comigo as mais generosas palavras:

- Está ótimo, exato! O seu trabalho é magnífico!

Dias depois convidou-me para a primeira execução do nosso trabalho, pelo Orfeão de Professores, no auditório do Instituto de Educação. A audição, com a presença de todo o Conselho Defiberativo da ABI e de seu Presidente Herbet Moses, que disse uma de suas breves e cordiais alocuções, foi realizada no dia 25 de abril de 1940, às onze horas de uma linda manhã. A canção foi calorosamente aplaudida e várias vezes repetida E o bom Villa-Lobos fez questão de dividir comigo um pouco de sua glória, pedindo "salvas de palmas para o poeta". E em seguida veio buscar-me pela mão para que recitasse sem música o poema, que "considerava esplêndido", o que eu fiz, ovacionado pelos presentes, contagiados pela liberalidade daquela grande e nobre alma.

E nasceu assim a alta e sincera estima que desde então me uniu a Villa-Lobos, estima que foi uma das grandes festas da minha vida, e agora, a morte muda em meus olhos num orvalho de mágoa.

A "Canção da Imprensa" seguiram-se para mim 19 anos de afetuoso convívio com o Maestro Villa-Lobos. Dezenove anos de uma amizade que contou em minha vida como pura alegria. e como alta glória. Compusemos juntos outras árias. E ainda, recentemente, apareceu em Paris, num bela edição a "Canção de Cristal", magnífica melodia com que o gênio quis honrar alguns versos singelos de um dos meus últimos livros. Todas estas lembranças enevoam minha alma - agora que se extinguiu aquele que era uma de suas luzes. E Quando ainda temos os olhos graves por sua morte, com emoção releio numa de suas cartas estas carinhosas palavras:

"Meu Caro Murilo: Tu sempre foste, és e serás um estado no país do meu coração"

E pela feliz circunstância de ter sido um dia parte de tão alto e luminoso país, não terá sido totalmente perdida a minha vida no dia em que eu me for.

Um comentário:

O Escrevinhador disse...

Artur, primeiro, agradeço por sua visita ao O Escrevinhador. O fascínio de seu tio-avô por Heitor Villa-Lobos é o meu. Tenho inúmeras gravações de composições do mestre, com as quais me delicio. Volte sempre ao meu blog. Da minha parte, serei assíduo freqüentador do seu. Abraços.