sábado, julho 08, 2006

Uma lição de jornalismo, por Voltaire

O texto abaixo saiu hoje no Caderno C do Correio Popular

Uma lição de jornalismo, por Voltaire


Artur Araujo
Do Cosmo On Line


Ele tinha 42 anos, estava na plenitude da forma intelectual e escrevia sobre tudo. Era um talento das letras e um dos primeiros na seleta intelligentsia de seu tempo. Nessa ocasião, refugiado no castelo da marquesa de Châtelet em Cirey-en-Champagne, na França, por conta de perseguições políticas, Voltaire (1694-1778) investiu sua mente brilhante em algo que, se não era absolutamente novo, estava ainda em formação. Intitulada “Conselhos a um jornalista” (Editora Martins Fontes, 170 p.), a obra, datada de 1737, foi traduzida e reimpressa este ano. Pela raridade das edições disponíveis, é obrigatória para aqueles que estudam o assunto.


Surgida no século XVI na Europa, a imprensa, como gênero, já se consolidara, apesar das perseguições dos regimes políticos conservadores do continente e das naturais dificuldades de qualquer segmento econômico em se desenvolver e prosperar.


O jornalismo, da mesma forma, não era um campo inexplorado de estudos. Tobias Peucer já apresentara, na Universidade alemã de Leipzig, em 1690, aquela que é considerada a primeira tese de doutorado sobre o tema: “Os relatos jornalísticos”, cuja excelência e atualidade ainda hoje impressionam.


A edição da Martins Fontes é na realidade uma coletânea de artigos do pensador e os “Conselhos a um jornalista”, que abre a antologia, ocupa 37 das 170 páginas do livro. Se o primeiro texto interessa como objeto de estudo, os seguintes –que são artigos publicados no “Jornal de política e literatura” (Journal de politique et de littérature) e na “Gazeta literária da Europa” (Gazette Littéraire de L’Europe)– são uma excelente forma de descobrir como o genial Voltaire encarava seus contemporâneos e as questões da época dele.


O texto pode ser considerado como o esboço de um manual de redação, pois é extremamente normativo, preconizando aos profissionais de imprensa uma ampla formação cultural, o equilíbrio na exposição de pontos de vista diversos na abordagem das notícias e o esmero na expressão lingüística, um conjunto de recomendações ainda atual. É aliás interessantíssimo o parágrafo de abertura. Nele, Voltaire propõe algo que talvez não fosse inédito na época, mas era certamente um conceito ainda pouco corrente na imprensa, que é a imparcialidade: “A publicação periódica na qual pretendes trabalhar pode certamente ter êxito, apesar de já haver muitas dessa espécie. Perguntas como se deve agir para que tal jornal agrade nosso século e a posteridade. Responderei com duas palavras: Sê imparcial.” O alemão Peucer, que antecedeu Voltaire, por exemplo, preconizava que a verdade era o fundamento do jornalismo, mas sequer toca na questão da imparcialidade, até porque a verdade, muitas vezes, como no caso da mentira ou da ignorância, está apenas em um lado da questão.


Os “Conselhos a um jornalista” dirigem-se à imprensa em geral, mas fica nítida uma ênfase à área da cultura, pois o autor se detém mais a respeito de procedimentos para a resenha de livros e a crítica de arte do que, por exemplo, no tratamento de questões políticas.


O texto é marcado por questões da época, e, em alguns casos, as recomendações, se compreendidas ao pé da letra, soam datadas, como por exemplo quando o autor francês recomenda, na página 30, que os jornalistas saibam ao menos inglês e italiano. O conhecimento de outros idiomas –seja qual língua for– é sempre útil a um profissional de imprensa e cada época tem uma conjuntura específica, que privilegia determinados vernáculos.


Voltaire era uma língua ferina e isso ajuda a apimentar o texto e a tirar-lhe, aliás, aquilo que o autor recomendou aos profissionais de imprensa: a previamente louvada imparcialidade. Apesar de a maioria dos nomes citados nos “Conselhos a um jornalista” terem espaço apenas nos mais meticulosos compêndios de história, é divertido vê-lo alfinetar personagens de um passado recente e mesmo seus contemporâneos como, por exemplo, na página 6, quando ele sugere eqüidade na discussão de fatos históricos: “Deixa Juvenal e Boileau, do fundo de seus gabinetes, passar carraspanas [reprimendas] em Alexandre [o grande], a quem teriam incensado à exaustão se tivessem vivido sob ele”. No primeiro caso, o autor refere-se a um suposto caráter adulador tanto do poeta romano (60-140), conhecido por suas sátiras corrosivas, quanto do escritor Nicolas Boileau (1636 – 1711), que morrera alguns anos antes, ou quando, nas páginas 18 a 21, critica a qualidade literária de alguns versos de Rousseau – que os leitores mais incautos podem confundir com o filósofo Jean Jacques (1712-1778), mas que se trata aqui do poeta Jean-Baptiste (1671 - 1741). O livro, aliás, não informa isso, o que pode ser considerado um lapso, principalmente pelo fato de a edição, vertida de um projeto literário francês, proporcionar uma fartura de notas explicativas de rodapé. Talvez isso seja óbvio para um leitor do país natal de Voltaire, mas não o é no Brasil.


Além do artigo que dá nome ao livro, alguns outros interessam pelos personagens que inspiraram os textos. Das páginas 41 e 44, Voltaire analisa a obra-prima do irlandês Laurence Sterne (1713-1768), “A vida e as opiniões de Tristam Shandy”, que inspirou Machado de Assis a escrever “Memórias póstumas de Brás Cubas”. O pensador francês sentencia, na página 42: “Há, em Sterne, lampejos de uma razão superior, como vemos em Shakespeare”.


Outro texto muito interessante é o seguinte, no qual ele faz picadinho do jornalista Jean-Paul Marat (1743 - 1793), que anos depois tornou-se um dos mais radicais partidários da guilhotina e que terminou assassinado por uma aristocrata simpatizante da realeza. Bem, além de homem de imprensa, Marat foi médico, e nosso arrogante e brilhante Voltaire dedicou-lhe, em 1775, um artigo no “Jornal de política e literatura” no qual desmorona vários conceitos da tese de doutorado do médico-jornalista. Entre outras coisas, vale destacar a da página 50: “Ao que parece o senhor Marat mais caluniou a natureza humana que a conheceu”. Para muitos historiadores, o período de 1770 e 1780 foi marcante na vida do futuro revolucionário, pois a sistemática rejeição de seus escritos –e Voltaire foi parte ativa nessa “queimação de filme”– ajudou-o a tornar-se, a partir de 1789, em um dos mais entusiasmados radicais da Revolução Francesa. Felizmente nosso articulista Voltaire morrera antes da queda da Bastilha e não correu riscos de vingança quando o polemista passou a ter poder político.


O livro da Martins Fontes é, portanto, uma referência importante para a formação de um profissional de imprensa. Muito mais do que acompanhar as mais recentes pesquisas publicadas pelo mercado editorial, cabe àqueles que estudam humanidades conhecer os textos basilares de seu ramo de estudo. O jornalismo, assim como tudo que é humano, muda, mas também é vital à imprensa que, sem perder a essência de ser um relato não-ficcional de acontecimentos memoráveis, consiga adaptar-se a novos momentos e novas etapas na história da humanidade. Dominar esse legado só consolida a formação de um profissional e pesquisador de mérito.

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