sexta-feira, novembro 10, 2006

Adeus, Lênin

A matéria vai ser publicada amanhã no Correio Popular de Campinas

A história do

homem que abalou

a história do século XX



Pai da pátria socialista é o tema de nova biografia do pesquisador britânico Robert Service



Artur Araujo
arturaraujo@cosmo.com.br
Do Cosmo On Line

Ele foi o grande defensor dos camponeses e dos trabalhadores das indústrias, mas também foi, como líder político, responsável pela matança de milhares desses homens e mulheres, assim como dos inimigos de sua ideologia. Foi também um adversário da polícia política tzarista, a Okrana, mas criou uma polícia política, a Cheka, que fez com que o aparato repressivo da monarquia russa parecesse um bando de amadores perto dos camaradas do porão soviético. Declarava-se, por fim, contra a guerra, um defensor da “paz definitiva” mas, assim que tomou o poder, comandou um governo que manteve o país em confrontos militares externos e internos, que culminaram gerando aquilo que o intelectual de esquerda alemão pós-marxista Robert Kurz denomina de “socialismo de caserna”. Estamos, obviamente, falando de Lênin (1870-1924), um dos homens mais importantes do século XX.

Tudo que foi dito acima é notório há décadas e motivo de vários livros, tanto em defesa dessas atitudes –e a obra “Dez dias que abalaram o mundo”, de John Reed, é um dos mais marcantes sob esse aspecto–, quanto na denúncia desses atos. Mas, com o fim do regime soviético, em 1991, novos ares ventilam as montanhas de documentos sobre aquela era. O fim da ditadura bolchevique permitiu a pesquisadores conhecer mais detalhes, tanto do regime, quanto daqueles que lideraram o governo revolucionário.

Foi nesse contexto que a editora Bertrand Brasil, por meio do selo Difel, nos trouxe "Lênin", do professor britânico Robert Service: um catatau de 630 páginas que narra desde a história da família dele até a morte do estadista, aos 53 anos. O que o livro acrescenta de realmente novo ao que já se sabe sobre o fundador do Estado Soviético? Honestamente, muito pouca coisa. O autor reforça a possiblidade de a revolucionária francesa Inessa Armand (1874-1920) ter tido um longo caso extraconjugal com ele, mas outros textos já tinham aventado essa hipótese. Robert Service também nos revela os bastidores do Kremlin, mas outras obras também fizeram isso. O livro, portanto, não tem valor algum? Na verdade, tem.

Trata-se de um trabalho muito bem escrito. Ótimo para quem não conhece a história do líder bolchevique. Foi produzido à maneira de um romance, conotando o talento narrativo de alguém que domina bem o ritmo de um texto de fôlego. "Lênin", de Robert Service, é, igualmente, preciso. Os fatos são minuciosamente e rigorosamente descritos na obra.

O livro, é bom frisar também, foi feito por alguém que não tem Lênin entre seus heróis, mas, de um modo ou de outro, a biografia é fiel e fornece um quadro minucioso do personagem histórico. O autor relembra, inclusive, a origem judaica do revolucionário, a qual ele aliás se orgulhava: Mosho Blank foi bisavô de Lênin por parte de mãe e judeu convertido ao cristianismo ortodoxo.

E o que vemos nesse minucioso quadro da vida do revolucionário? Um homem inteligente, cruel, autoritário, obstinado, insensível, carismático e absolutamente independente no plano intelectual.

Eis aí, aliás, um problema do livro de Service e de uma miríade de outros biógrafos de líderes políticos: personalidade não “explica” política de Estado nem mesmo de partido. Políticos —não importa a cor ideológica— são atores. Eles expressam, canalizam e representam aspirações de grupos sociais. No momento em que deixam de fazer isso, deixam de ser políticos. Por isso, misturar psicologia e política, como mais de um biógrafo já se sentiu tentado a fazer, termina por criar um quadro distorcido.

Lênin era muitas vezes insensível. Várias passagens da vida dele mostram isso e a biografia não deixa de mostrá-las. Robert Service nos conta, por exemplo, que o primo dele, Vladimir Ardashev, com quem manteve ótimas relações na adolescência, foi morto por bolcheviques por “pertencer à burguesia” —uma acusação aliás que cairia como uma luva também no pai da nação soviética, cuja família, para piorar, descendia da pequena nobreza russa por parte do avô materno, Alexander Blank. Ficamos sabendo também que Lênin não deu bola para a morte de Vladimir Ardashev. Após a leitura desse livro, somos levados a concluir que o dito de Oscar Wilde: “as biografias deram à Morte um novo terror”, é perfeitamente pertinente: defuntos famosos terminam eternizados não só pelo lado positivo de suas vidas, mas também por suas proezas degradantes nesse tipo de obra...

No contexto das barbaridades de Lênin, acrescente-se, o assassinato da família do tzar, em que pese a insensibilidade social do monarca russo e o desastrado governo dele, teve toques dignos de crime organizado e só reforça a imagem de crueldade de seu mandante, o fundador do regime soviético. A família real, inclusive as crianças, foi chacinada sumariamente durante a madrugada, na adega de uma casa em Ecaterimburgo, após vários meses sob o regime de prisão domiciliar, no ano de 1918.

Bem, estamos então diante de um Lênin cruel. Isso explica a crueldade do regime soviético, certo? A resposta mais provável é não. O regime tzarista também foi cruel e o frágil regime do socialista moderado Alexander Kerenski (1881-1970), que tentou não ser cruel, caiu de maduro em poucos meses. Era uma época de instabilidade e a atitude que garantiu a manutenção do poder foi a truculência, o que não legitima em nada o que foi feito.

Dentre os vários episódios destacados no livro, o autor resgata, nas páginas 385 e 419 a 421, episódios menos citados na biografia do estadista. Estamos falando dos atentados sofridos por Lênin em 1918. Poucas linhas, contudo, foram dedicadas ao tema. Mesmo o nome de Dora Kaplan, militante socialista que tentou matá-lo a tiros em agosto daquele ano, não foi mencionado na passagem, o que soou como um pequeno lapso no contexto do grande esforço biográfico do livro. Já a doença que vitimou o líder bolchevique, Robert Service descreve minuciosamente sua agonia, descartando, na página 501, a hipótese de sífilis e atribuindo a causa mais provável à arteriosclerose.

O líder bolchevique morreu em 1924 e o regime que ele criou deu seu último suspiro em 1991. O fenômeno Lênin, contudo, está longe de ser esquecido. Certamente, o líder bolchevique entrou para a história do mundo e da Rússia, não de modo tão sinistro como Hitler, mas talvez —como Eisenstein já sugeriu para Stalin— como um Ivã, o Terrível; ou seja, um líder cruel, mas necessário em função de razões de Estado. Lênin não deve, aliás, ser compreendido individualmente. O marxismo vulgar que, sob o verniz de ciência, esconde crenças religiosas tão dogmáticas quanto o cristianismo, tem seu apelo no fracasso capitalista de promover a inclusão social.

Karl Marx iniciou seu Manifesto Comunista com a bombástica frase “Um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo”. O marxismo foi, de fato, um “fantasma”, que materializou-se na Revolução Bolchevique e praticamente exterminou modelos alternativos de mudança social. O programa autoritário de salvação do filósofo alemão foi personificado nas táticas e idéias de seu mais famoso discípulo, o também autoritário Lênin. A morte dele e a ascensão de Stalin, que radicalizou tudo de ruim que já estava germinando sob o leninismo, terminou por torná-lo uma múmia, não apenas no sentido de um grotesco cadáver em permanente exposição na Praça Vermelha, mas também como uma “múmia metafórica”, que criou um padrão de pensamento e de atitudes para os grupos de esquerda do mundo, rondando-os e assombrando-os até hoje.