quarta-feira, julho 19, 2006

Meu tio-avô, Murillo Araujo

Descobri mais uma obra de meu tio-avô Murillo Araujo, a quem dediquei um site.

O sr. Marcelo Rodolfo, do Museu Villa-Lobos no Rio, me passou dois textos dele. São crônicas sobre como ele compôs a Canção de Cristal e a Canção da Imprensa, juntamente com Villa-Lobos.

Ao sr. Marcelo Rodolfo manifesto aqui mais uma vez minha gratidão.

O segundo texto segue abaixo. Ele consta do livro Presença de Villa-Lobos - 1° Volume O texto abaixo consta do livro Presença de Villa-Lobos - 1° Volume, (MUSEU VILLA-LOBOS, org. Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/DAC/Museu Villa-Lobos, 1° Vol., 2ª ed., 1977), nas páginas 170 a 172.

Como surgiu a


Canção de Cristal


Murillo Araujo

Villa-Lobos, o grande poeta dos sons, tinha, como todos os poetas, uma alma iluminada de criança.

Era, porém, uma dessas crianças de inicio esquivas, que armam cara feia para os desconhecidos; mas que abrem depois aos que lhes souberam conquistar a confiança, o delicado coração repleto de bondade e de pureza.

Suas reações eram a principio arrebatadas e bruscas.

E eu bem senti essa verdade naquela tarde em que o encontrei na ABI, interessado como sempre em sua partida de bilhar.

Já me fora dada a distinção de figurar com meus versos ao lado de sua pauta ilustre em três ou quatro de suas composições, desde a "Canção da Imprensa", de que resultara o nosso conhecimento mútuo, quando Herbert Moses me confiara a missão de escrever-lhe a letra.

Já recebera mesmo do grande músico muitas provas daquela generosa estima que foi para mim alegria tão rara como alta glória.

Por isso naquele dia, dirigi-me a ele cheio de esperança para o favor que vinha solicitar-lhe.

- Maestro - disse - tenho tido a fortuna de, por mais de uma vez, entrar com meus poemas em sua música. Queria agora que me fizesse honra maior, musicando uma canção que escrevi há pouco.

Para surpresa minha, Villa-Lobos suspendeu a tacada que ia desferir, com ar sério e frio.

- É, mas eu já havia jurado que não comporia mais nada no gênero depois das minhas serestas - respondeu. - E sua canção, além do mais, é para voz de homem. Pior ainda!

- Está bem. Fiz-lhe esse pedido por saber com que facilidade compõe: mas se é assim não falemos mais nisso...

E tratei logo de retirar-me.

Villa-Lobos, porém, falou-me no outro dia e várias vezes depois, todas as vezes em que nos encontrávamos.

- Onde estão os versos? - dizia.

E como eu lhe replicasse que o assunto estava liquidado, insistia:

- Mas eu quero ver o poema. Eu também gosto dessas coisas.

- Não. Aqui não. Empreste-me o papel para eu ler em casa.

E, na primeira ocasião em que me viu depois, foi-me dizendo logo com um franco sorriso:

- Ah! mas aquilo é, muito bonito! Aquilo eu não lhe devolvo já porque quero musicar!

Sucedeu, porém, que a seguir enfermou gravemente.

Pensei que, em meio das mais graves apreensões, lutando com a morte, não se lembraria mais, é claro, de meu modesto pedido.

Quando voltou da América, onde fora operado com êxito, felizmente, fui visitá-lo. E recebeu-me, ainda muito pálido e estendido em seu sofá, com estas palavras amigas:

- Oh "coração dos outros”! Foi preciso que eu quase morresse para você vir aqui me ver?

Conversamos sobre muitas coisas, mas não lhe toquei, como era natural, na canção.

Passaram-se meses. E já nem me lembrava mais do caso quando fui chamado ao telefone. Era Villa-Lobos.

- Passe logo mais pela ABI - disse ele - que há lá qualquer coisa para você.

E quando indaguei do encarregado, na Associação, se havia "qualquer encomenda para mim, recebi, numa caprichosa cópia, a música da "Canção de Cristal"!

Dias depois fui chamado à casa do Maestro onde conheci a extraordinária artista Cristina Maristany que, com sua aprimorada técnica e sua voz de ouro, interpretou pela primeira vez a nossa canção.

De regresso, finalmente, de uma de suas últimas viagens à Europa, Villa-Lobos presenteou-me com exemplares da "Canção de Cristal", que acabara de ser lindamente editada em Paris Casa Casa Max-Eschig.

Depois de amuo passageiro, a criança, que era no íntimo a alma do gênio, sorria enfim... sorria com aquela alta luz de bondade total.

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