segunda-feira, abril 01, 2019

Turma indígena da Unicamp completa um mês com novos desafios para estudantes e universidade

Bárbara C. R. Marques
PUC-Campinas

Recepção aos "bixos" aprovados no Vestibular Indígena
A Unicamp recebeu sua primeira turma indígena em fevereiro de 2019. Aprovados em 27 cursos distribuídos nos campus de Barão Geraldo e Limeira, 68 estudantes ingressaram na universidade por meio da primeira edição do Vestibular Indígena. Essa é uma das medidas aprovadas no final de 2017 que visam intensificar a diversidade étnica e social na melhor universidade da América Latina. Entretanto, o ingresso desses novos alunos é um desafio tanto para os calouros quanto para a própria Unicamp.

Segundo Juliana Sangion da assessoria de imprensa da Comvest, antes mesmo da aprovação do vestibular indígena, a Unicamp promoveu diversas discussões sobre o tema, com convidados indígenas de outras instituições e audiências públicas.  Essas ações ajudaram a trazer as questões indígenas para o debate na Unicamp. Além disso, houve uma programação de recepção aos calouros indígenas que envolveu toda a comunidade interna. Para receber os ingressos, uma rede de apoio foi montada por estudantes, funcionários e professores. A ONG Projeto Mawako, atuante em São Gabriel da Cachoeira, integra essa organização. Apesar de não ter uma parceria formal com a Unicamp, o projeto deve integrar o Grupo de Trabalho (GT) que está sendo organizado para acompanhar os ingressantes e pensar na permanência efetiva deles na universidade.

Arlindo Alemão Gregório (nome indígena Curumim), 38 anos, da etnia Baré, veio de São Gabriel da Cachoeira com sua esposa e seus dois filhos para cursar Engenharia Elétrica. A decisão de cursar Engenharia veio de sua experiência profissional, além do seu amor pela área de Exatas. Mestre de obras, Arlindo já atua na área de construção civil e decidiu se aprofundar mais nesse campo. “Eu sou fissurado por matemática. Gosto muito de matemática, acredito que meus professores já perceberam isso. Quanto mais desafio, quanto mais difícil, mais eu gosto. Encaro tudo isso como um desafio, um sonho, e se tiver que buscar esse sonho por esse caminho tenho que buscar da forma mais suave possível”. Ele ainda ressalta que os professores são bastante didáticos e que está gostando muito do curso.

O Projeto Mawako acredita que a Unicamp será a maior beneficiada por essa intensa troca cultural, uma vez que os estudantes trazem consigo um conhecimento milenar que, até então, não temos acesso. O papel deles no GT é auxiliar com a experiência e conhecimento da região de São Gabriel e buscar soluções para problemas que possam aparecer, garantindo que esses estudantes não sejam diminuídos pela sua condição de minoria dentro da universidade. “Nós indígenas não somos e nunca seremos um povo frágil”, diz Arlindo, que pretende lutar junto a outros estudantes da Unicamp por mais políticas afirmativas.

Em 2018, a Unicamp foi alvo de vandalismo e ataques racistas. Existe uma preocupação dos indígenas em relação a isso. Ele ainda destaca que, apesar dessa iniciativa, a responsabilidade de solucionar possíveis casos é da Unicamp. “O sistema político da Unicamp é que tem que gerir esse tipo de situações, mostrar caminhos adequados: quem procurar, como procurar e o que fazer. A instituição em si tem que responder por esses fatos ou direcionar de alguma forma.” Questionada sobre como lidarão com possíveis discriminações, a Comvest diz ter aprovado, junto ao vestibular indígena, a criação de uma secretaria responsável por ações de combate ao preconceito. A Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade é a instância que cuidará de questões como acompanhamento e permanência estudantil. Em caso de denúncias, elas deverão ser encaminhadas à Ouvidoria da Unicamp.

Essa grande mobilização da comunidade interna também pode ser vista nas políticas de permanência voltadas para os novos estudantes. Segundo dados da Assessoria de Economia e Planejamento (Aeplan), R$ 40.735 milhões do orçamento de 2019 foram reservados para o Programa de Bolsas da Unicamp. Antes mesmo do início das aulas, os indígenas foram submetidos a uma triagem socioeconômica. Todos os estudantes serão contemplados de acordo com suas necessidades. Segundo a coordenação do Serviço de Apoio ao Estudante (SAE) ao G1, os alunos que atendem aos critérios socioeconômicos contam com o Benefício de Isenção da Taxa de Refeição (BITA) que permite que o estudante utilize de forma gratuita o Restaurante Universitário e com a Bolsa Auxílio-Social (BAS) no valor de R$678,81 mais o reembolso do transporte. Além disso, a Bolsa Auxílio Instalação foi destinada às primeiras despesas dos calouros, antes que eles tivessem definido sua moradia.

A moradia na cidade de Campinas é outra garantia da Unicamp aos ingressantes. Segundo o SAE, caso o número de vagas disponíveis na Moradia Estudantil sejam insuficientes, os estudantes contarão com o auxílio moradia no valor de R$428,75. Além disso, alguns estudantes foram hospedados na casa de voluntários. Alunos, professores e funcionários estão se mobilizando para receber e proporcionar uma boa convivência com os recém chegados.

Ainda sim, relata-se que algumas bolsas só sairão em Abril devido à problemas burocráticos do SAE. A documentação exigida não foi atualizada a tempo para receber os indígenas, requerendo documentos que eles não possuem, como certidão de casamento e comprovante de residência. Porém, Arlindo ressalta que essas pendências já estão sendo resolvidas e que a própria Unicamp forneceu o comprovante para assegurar que eles abrissem contas em bancos. “Eu acho que em pouco tempo eles conseguiram dar assistência a pelo menos 99% da gente. Acho ainda muito prematuro para tirarmos conclusões.” Ele recebeu o auxílio necessário da Unicamp para se instalar em Campinas, mas como ainda não recebe a BAS ele se mantém com seu próprio dinheiro e recebe a ajuda de voluntários. “Se Deus quiser daqui pra frente vai tudo melhorar. Estamos nos instalando aqui e acredito que quem não tiver bolsa vai trabalhar, a maioria tem profissão e os que não têm, tem a bolsa.” Nesse quesito, ainda destaca que eles possuem vários projetos de montar oficinas para levar a cultura e o conhecimento indígena para a população. “Divulgar o nosso jeito de viver, de estudar, nossa forma de nos inserirmos na sociedade para desmitificar o que a maioria pensa – que ainda estamos em 1500”.

Uma dessas voluntárias é Alessandra Pires Nogueira Ribeiro, terapeuta ocupacional. Ex-aluna bolsista da PUC-Campinas, ela sabe o que é lidar com dificuldades e se envolve em inúmeros trabalhos voluntários. Apesar de não ter nenhum vínculo com a Unicamp, ela se solidarizou pela causa indígena. Teve a iniciativa de arrecadar, entre outras coisas, utensílios domésticos para doar. A ação teve início em seu condomínio, mas ela conta que não obteve muito sucesso primeiramente: “Ouvi críticas do tipo: ‘Você está dando mau costume para esse povo’”. Ainda sim, não desistiu. Conheceu duas famílias indígenas, sendo uma delas, a de Arlindo, que atualmente ajuda a repassar as arrecadações de Alessandra para outros indígenas.

O Vestibular Indígena promovido pela Unicamp representa muito no atual cenário político. O governo Bolsonaro tem propostas polêmicas em relação à questão indígena, beneficiando o agronegócio em detrimento da demarcação de terras indígenas. O próprio presidente tem declarações bastante polêmicas em relação aos índios – em 2004, em uma Comissão da Câmara, chamou-os de “fedorentos, não educados e não falantes de nossa língua.” Portanto, essa é uma medida que indica um avanço no sentido de inclusão e representatividade. A presença dos indígenas na universidade pública é compromisso assumido pela Unicamp com a sociedade brasileira de tentar proporcionar alguma resposta à essa complexa questão e pode vir a ser copiada por outras instituições públicas como a USP e a UNESP.

Entretanto, a língua portuguesa é uma particularidade do vestibular indígena. O Projeto Mawako aponta que, entre os povos da etnia Baré, o tupi moderno é a língua nativa. Ao elaborar a prova do vestibular a Unicamp buscou contemplar as diferenças da realidade educacional desses povos para o sistema educacional público brasileiro. Além de ser possuir uma única fase e ser composta por questões que conversam com a realidade indígena, a prova não contou com questões de Língua Inglesa, uma vez que a realização do vestibular na língua portuguesa já atestaria o domínio de uma segunda língua por parte dos estudantes. Esse é mais um dos desafios da Unicamp ao integrar os calouros. Segundo a Comvest, além dos cursos de línguas oferecidos a todos os estudantes da Unicamp, neste primeiro semestre os indígenas cursarão uma disciplina de língua portuguesa. Arlindo confirma a informação dada pela Comvest e ainda complementa dizendo existe um curso de nivelamento de matemática. Para ele, a língua não será um obstáculo no caminho dos índigenas: “Hoje os indígenas contemporâneos estão inseridos na sociedade. Conheço indígenas engenheiros, médicos, farmacêuticos, advogados. Já estamos inseridos na sociedade acadêmica. É claro que, sendo o primeiro vestibular indígena, tudo parece novo. Mas estamos espalhados pelo mundo. Minha etnia Baré é um povo que gosta de estudar e buscar seus sonhos.”

A primeira edição do vestibular indígena foi considerada um sucesso. A Unicamp agora avalia os índices de inscritos e abstenção para traçar as definições das próximas edições. Fatores como a distância e a confusão com o fuso horário podem ter contribuído para o índice de abstenção considerável. A Comvest considera que diante das circunstâncias a demanda foi excelente e o índice de abstenção total de 41,32% foi dentro do esperado. Outra explicação possível é a baixa quantidade de inscritos. Em Recife, cidade com maior abstenção, o total de inscritos foi de 45 alunos, dos quais 34 se ausentaram. Além disso, cada Instituto deve discutir se haverá ou não alteração no número de vagas oferecidas nos próximos anos.

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